terça-feira, 4 de agosto de 2009

Convite sem recusa.


De repente tudo vai embora. Se esqueceu o ferro de passar ligado, não vai dar tempo de voltar. Se a pizza está no forno, só dá tempo de queimar. Se a Coca está muito quente, não dá tempo de gelar, se o cigarro está aceso, não dá tempo de fumar. Lançaram um disco novo e nem tem tempo de escutar, se arrumou mais de uma hora sem ter tempo de ir dançar. A prova ainda viva de que a vida e a morte estão tão próximas que nós nem imaginamos, a morte quando fixa o olhar em um de nós, não tem nada que o desvie. E os sinais? Quando você sabe que um moço que você conhece morreu, automaticamente vai voltando a fita no seu subconsciente. A última vez que falou com ele, que falou sobre ele, que pensou nele, que tocou na mão dele. A última vez que lhe pediu o isqueiro emprestado, que pediu licença para passar, que pediu para abrir a porta. Essa semana eu estava andando na rua e pensei “Eita, o Ricardinho, vou lá falar com ele.” Cheguei perto, nem era. Foi no dia seguinte, meu bem, no dia seguinte que me ligaram para dizer que Ricardinho havia morrido, o carro estava detonado.
E dizem que foi um acidente. Acidente? Acidente é topar o pé em uma pedra esquecida no caminho, é derramar café no trabalho da faculdade, acidente é cortar o dedo abrindo uma lata de sardinha, quebrar um copo na cozinha, chegar mais tarde sem avisar, quebrar a ponta de um lápis, escorregar quando a doméstica está passando pano, prender o dedo na porta do carro, tropeçar no pé alheio. Não quando um carro vira lata velha e um homem vira carne morta. Foi uma tragédia, uma catástrofe, matou alguém.
E quando é recente, você passa a ter medo e viajar nas lembranças. Tem medo de não dar tempo de dizer que ama com todo o coração, de não dar tempo de terminar o curso, de fazer o suco, de ligar para dizer que sente saudades, de desejar parabéns. Medo de não ter tempo de pular daquela ponte nas águas geladinhas daquele rio e levantar gritando “vem, vem!”. Tem medo de não ter mais tempo. Seja tempo o suficiente para decidir para onde vai, para decidir se prefere a camisa azul ou a preta, medo de não conseguir contar a verdade, de não entregar o que prometeu, de não ir ao show da banda que mais gosta. Eu tenho medo de não conseguir ficar em dois lugares ao mesmo tempo e segurar a mão Dele, como quem segura a mão de um príncipe.
E as lembranças? Bem, a respeito de Ricardinho são poucas. Fim de semana na praia dele, na casa de um amigo em comum. Ficávamos no quarto conversando, eu, ele e uns amigos em comum, inclusive o dono da casa em comum.
Ia andar pela praia, na areia fina do Francês, “Ricardinho, rapaz!”, e ele mal sorria, era sério.
Ele sabia onde vendia flau de maçã, é verdade, lembrei disso agora, ele sabia onde vendia flau de maçã.
Eu moro em um estado pequeno e em uma cidade que é muito menor do que deveria ser, conheço N por cento da população e o tempo inteiro morre XYZ por cento dessa população, mas eu quase nunca conheço um deles. E fico grata, são pessoas que não fazem mal a ninguém. Ainda acho que não deveria. Ele nunca matou ninguém seja lá por qual motivo for, nunca assaltou ninguém para alimentar um vício e nem para outros fins. A vida seria muito mais cômica se não fosse tão trágica. E é diante de situações complexas como essas que eu tenho a plena consciência de que deve provar de tudo na vida, aproveitar enquanto se pode sorrir. Quem quiser cheirar pó, que cheire. Quem quiser tomar doce, que tome. O amanhã pode ser interrompido em uma colisão com um fim deplorável. E quando o fim estiver lhe puxando pelo braço, ele não vai te esperar abotoar a calça, nem te esperar terminar de jantar, nem colocar mais açúcar, ou retirar o pimentão da salada. Não vai esperar nada, você vai como estiver, fazendo o que estiver fazendo. A morte não lhe tem piedade.

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